domingo, julho 16, 2006

Desabafo

Nos fins de semana destes tempos de seca, em Brasília, se não está quente demais, quando tenho tempo calço meus tênis e vou para o parque da cidade correr com o sol a pino. Me atraem a luminosidade, a ausência de sombras, o céu sem nuvens, dolorosamente azul. Depois de alguns quilômetros, correr é entregar-se a um estado levemente alterado de consciência. O calor, o esforço e o coração batendo, sem falar de alguma dor ou outra impelem-me a esquecer do mundo e voltar-me para dentro, para meu corpo e meus pensamentos. E justamente a transparência do ar e a milimétrica nitidez do mundo sob o sol e o céu de Brasília no inverno ajudam a contrabalançar esse efeito e a trazer-me de volta para a realidade externa.

Mas também gosto de sair de casa à tardinha e correr pelas entrequadras de Brasília, enquanto a noite cai. É o oposto: o lusco-fusco, as lanternas dos carros, os rosas e os cinzentos do poente se misturam com o suor nos olhos semi-cerrados. À medida em que cresce o esforço, mergulho numa estranha auto-consciência, correndo em meio a uma semi-existência. Corro nas calçadas, vagamente cônscio de passar por outros caminhantes, sombras que bem podiam existir como não existir. Por isso gosto de correr à noite, tanto quanto gosto de correr de dia.

Pois eu tinha um amigo, um grande amigo, que não era muito de correr, mas, quando o fazia, só gostava de correr à noite. E me contava que, assim como a mim, eram justamente a irrealidade e a auto-consciência que o interessavam. Correr de dia, porém, não era com ele. Definição demais, concretude demais. Há vinte dias, esse amigo se matou.

Diógenes, e agora estou falando com você, Diógenes, você deixou todo mundo estarrecido. Como alguém tão sem problemas concretos, alguém tão alegre e tão risonho e com tantos amigos, tantas mulheres, alguém que tem o seu dom, o dom de ser amado por todos, como alguém tão inteligente e tão capaz de aproveitar a vida pode ter preferido encerrá-la tomando remédios pra dormir e queimando carvão num quarto fechado. Ninguém entendeu, ou quase ninguém, eu demorei a entender mas agora acho que te entendo, Diógenes, você que dizia me admirar tanto, mas que não conseguiu deixar de me ver como um rival, nem sabia que eu o admirava tanto também, que eu gostava mais de você do que você de mim, mas isso em se tratando de você não é novidade, você que me chamou de meu irmão e me abraçou e chorou no meu ombro, você que esqueceu tudo tão rápido e me feriu e me ignorou completamente como se eu fosse uma daquelas sombras na sua corrida noturna, assim como ignorou todo mundo, todos, e, supremo egoísta, acabou com a própria vida, justamente pelo egoísmo lhe ser tão desconfortável, você que queria o amor do mundo, você que de tão especial quase o conseguia, você que era tanto pra tanta gente, você que em tantas coisas é tão parecido comigo, mas tão parecido, e por isso mesmo ficamos tão amigos, um tempo, você que, sem querer, me ensinou mais sobre mim mesmo do que eu pensei que ainda pudesse aprender, é mentira o que disse antes, não estou falando isso tudo pra você, já que, segundo o que você mesmo acredita, você não existe mais, mas pra mim, estou escrevendo pra mim, Diógenes, o que resta de você já está descansando em paz, e eu, que sigo vivo, te digo que ainda estarei em paz contigo.
 
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